segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Velho Ano Novo D´Hela


Quando eu tinha sete anos de idade, perguntei pra minha mami:
- Mãe, por que eu fui concebida?
Ela respondeu: -Ah! ... por causa de muitas coisas Hela... um dia eu te explico.

Lasquei a colher com força na papinha de abacate que eu era obrigada a comer por causa da prisão de ventre e fiz um estrondo. Precisava saber, era uma pergunta de ano novo, o fim da minha primeira infância. Ah, ela ia me contar, se ia! Bati de novo no prato e cuspi o maldito mingau. Até que ela tomou o talher da minha mão, sentou bem na minha frente e disse num depoimento emocionado, lotada de todas as inflexões que se pode imaginar:

- Você foi concebida do nada, meu bem, do nada. Cheguei em casa após a ceia de natal da minha descompensada família e concluí: sou só e morrerei só...(ela ficou cabisbaixa), apesar de ter nascido com meu umbigo grudado ao da outra que morreu na hora do parto...

Mami acendeu um cachimbo e começou a puxar e soltar muita fumaça, a brancura saía junto com suas palavras.

- Vivo e acho que sempre viverei com esse autismo pseudo voluntário... então eu, que sou igual a todo mundo, resolvi parir você pra estraçalhar meu monólogo interno e vomitar um solilóquio paradoxalmente coletivo.

Eu já tava com vontade de pegar aquela colher e me entupir de papinha, mas mami tava absorta em si mesma.

-Expurgar e tentar juntar cacos se equipara à única possibilidade de diversão do agora; esse escorrega sinuoso que leva a qualquer coisa de um lugar qualquer.

Ela ficou eufórica numa piscada de olhos! Com um vigor instantâneo, como se quisesse estraçalhar sua agonia, mami pegou o sabão em pó E tacou junto com água no chão da cozinha E se sentou na espuma como se tivesse num tobogã E deu a ficar escorregando pelo assoalho enlouquecidamente E enquanto isso falava E falava cada vez mais pelos cotovelos E rodopiava a colher no ar como se fosse uma varinha de condão, aff!
- Gozar o inconsciente! AHHHHH! (parecia uma vaca parindo) BLÁBLÁBLÁS poderiam ser amassados se tivessem em papel! Mas o BLÁBLÁ estará confinado porque será o virtual de uma tela. Lascas jogadas ao infinito! BLÁBLÁBLÁ pra apenas colocar fora o nada. Você! HELA !

Mami deu um saltito abrupto no ar, umas baforadas mais e, numa languidez danada e repentina como todas as suas variações de humor, apoiou a colher no próprio queixo, uma puta canastrice.

- O nome dela? (mega pensativa)... Hum... O nome dela será um anagrama do caco......OCAC...COCA, não, não, não...CCOA, hum...ai, preciso de mais uma consoante... só com o c fica difícil......CACO...pedaço...treco...o ALEPH ... Embaralha! LEPHA... LEPHA... PHELA, ISSO, PHELA! P+ HELA... PITADAS DE HELA! HELA! E apontou com vigor a colher pra mim! Os olhos mareadinhos, mareadinhos...

-Pronto! Você veio ao mundo e deu as Caras! Te amo minha bochecha! Minha mãe me deu um beijo estalado e foi enxugar as lágrimas no banheiro.
Foi aí que pensei: nunca mais pergunto nada pra minha mãe. E fiquei livre.
HELA ficou livre.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Sincronicidade Natalina





















Hela se deparou...
“Raskólnikof lembrou-se de repente das palavras que Marmêladof dissera na véspera: Compreende, compreende, senhor, o que significam não ter essas palavras: não ter pra onde ir?... Todo homem necessita de um lugar para voltar.”(Crime E Castigo- Dostoievski)
... e mais uma vez os sinos martelaram a agonia da constância inconstante dos ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, cclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos, ciclos...

sábado, 20 de dezembro de 2008

"E a calma, chega?" ou "A cereja do açúcar queimado".























ps: continuação da saga anterior...

Aprimorei o ritual da respiração - tapava a narina esquerda, inspirava pela direita, tapava a direita e expirava pela esquerda - enquanto dava meia volta ainda torcendo pro porteiro evangélico ter uma guimbazinha que fosse. O vício em rotina sempre foi a causa do meu sofrimento. O porteiro dormia e dormia tanto que se engasgava com os próprios roncos. Eu, de cuecas em frente ao prédio, sem cigarro e sem socorro e o inútil dormindo. Era um bastardo imprestável mesmo. Comecei a balançar a grade do portão e ele não acordava. Sacudia mais, BERRAVA e nada. Parecia que eu tava tomando um choque elétrico pelo tanto que me estrebuchava.
De repente:
Cheiro de açúcar derretido...
Num supetão virei de costas: do outro lado da rua, um PIPOQUEIRO GRISALHO FUMANDO UM CIGARRO, com gorro na cabeça e sobretudo, soltando fumaça gelada no ar, de nicotina e manteiga, o açúcar queimando, que cheiro, que papai-noel incestuoso... e Hela atravessando a rua livre, leve e solta como seus cupins... Ai, e que vontade de abraçar aquela bunda... e os olhos apertadinhos... fui chegando perto... aquele raro tipo cão que ladra e morde gostoso... comecei a sentir calor, meus pés queimando dentro das meias, minha cueca passando de conforto a incômodo... só podia ser alucinação demais... eu aterrissava finalmente na luz, uhuhu, e o talzão já me estendia o cigarro com um sorriso maroto.
Dei um tragão seguido de tossida brava- um Derby naquela dimensão também era bom demais. Disparei:
HELA: Você tá sempre entre o doce o salgado?
Com voz rouca e quente, muito quente, ele sussurrou se aproximando do meu cangote...
PIPOQUEIRO GOSTOSO: Adoraria, mas na maior parte das vezes a gente tem que escolher. Agora, por exemplo, é melhor o salgado... (continuou me lambendo só com os olhos) Uns milhos dessa pipoca deixam qualquer um pronto pra jorrar a noite toda.
HELA: Orgasmo de porco, eu disse, quase gemendo. 8 minutos cada gozada.
PIPOQUEIRO GOSTOSO: Exatamente.

Eu tava quase tendo ejaculação precoce.
PRONTO.
Quando a gente entrou no prédio o porteiro nem pestanejou pra abrir a porta e não soltou sequer um pio ao ver o carrinho de pipoca subindo pelo elevador social. Raiamos o dia trepando alucinadamente, desconstruindo posições e soltando sons cretinos.
Gozei feito porca no abatedouro.
As crostas de irritação se despedaçaram e o bairro inteiro, que na noite mundana cheirava a cachorro quente, matinou perfumando a açúcar queimado.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Hela conta até dez.


Tudo aqui é diferente, até corujar na madrugada fria duma casa nova grande demais prum umbigo que não nasceu grudado ao de ninguém. Larica danada, geladeira vazia e armário só com bichos comedores de madeira. A fadinha que aqui morava tinha pena dos coitados e deixava se reproduzirem sem nenhuma repressão - as gavetas da cozinha pareciam campos de amor livre dos anos sessenta... Vontade de comer semente de abóbora, mas às quatro da matina o máximo que eu podia encontrar seria um Doritos. Isso se a RETARDADA AQUI NÃO TIVESSE PERDIDO HOJE A PORCARIA DO CARTÃO DO BANCO... não tinha dinheiro, nem débito, nem cheque! Merdão bonito. Dava pra formar uma fila em volta da Lagoa só com as coisas importantíssimas que eu perco correndo por aí.
Mas hoje a culpa não foi minha.
Mentira.
Foi. E o pior é que você já sabia. Faz parte da sua natureza, bocó.
Preciso de nicotina. Ai, Céus... foi-se o tempo do Grisalho Marlborão junto com o antepenúltimo celular.
Vou ali no posto e faço charme, não tem como me recusarem um maço de cigarros, pago amanhã ué! Tava decidido. VIVA O CHARME NO POSTO 24 HORAS.
Bati a porta e entrei no elevador ocupado por um saco de lixo: a merda na minha frente, mais uma vez. Mania anti-higiênica essa que têm as pessoas daqui: despachar lixo pelo transporte de gente.
Pisei na rua de cueca samba canção, havaianas maiores que meu pé, blusa traçada, meias vermelhas esticadas ao máximo pra barrar o rajão de vento e óculos de alguém perdido na sua velhice.
Dez passos e chego no posto: FECHADO.
DESCONSTROLE TOTAL. O mundo tá sempre contra.
Ensandecida, Hela gritava pra noite vazia.
Bufei, bufei, bufei e mordi minha própria mão até sangrar. Voltei chorando de irritação. AUTOPIEDADE É UMA BELA MERDA SUA ESTÚPIDA. DEIXA DE SER BEBEZONA. RESPIRA E CONTA ATÉ DEZ. Puxei o ar pelo nariz - inflando o diafragma feito neném - e soltei pela boca... E a calma, chega?

domingo, 14 de dezembro de 2008

Hela nasceu de perfil.



Pega o telefone. Chama uma. Chama duas. Desliga.
Dá de cara prum Modigliani sem olhos. Perdeu o contato?
Mete um palito de dentes na unha encravada do pé.
Disca de novo. Alguém atende.
HELA (de supetão): São coisas que vem à parte na minha cabeça.
Alguém: Eu sei.
Hela: Sabe?
Silêncio. Silêncio longo. Silêncio longo e cheio.
Hela e Alguém:Tá aí?
Suspiram. Cerram as pestanas.
Adormecem abraçados; cada qual ao seu aparelho.
RóóóncoSsssss sinfônicos e distantes.
Hela e sua grande orelha rosa... tudo podia ser reouvido nesse mundo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

HELA não tem decência nem nunca terá


"Tive sérios e prazerosos tremeliques."

Era pra ser o dia de mais ansiedade, hiper putice reprimida, total desespero, tristeza supostamente derradeira e tudo o mais que te coloca no poção sem fundo. Pra completar, ainda tava de TPM e sem minha fluoxetina. Tinha vontade de esmurrar as paredes, rasgar todos os meus cadernos e meu dinheiro, vomitar pela janela toda a barra de nougat edição limitada que eu tinha engolido. Mas não fiz nada disso. Fiquei só, implodindo a mim mesma. O sol urrava lá fora e eu suando em bicas numa tarde torrencial em que não conseguia ver o céu, não era capaz de levantar do sofá e ir até a janela que dava para o vão do prédio... ao menos lá eu podia ver alguma nuvem.... Foda-se. Continuava deitada, carimbando as almofadas, explodindo o estômago, sem sequer esticar o braço pra apagar o cigarro. Quantas guimbas havia no chão eu já não fazia idéia. Típico dia do marasmo suicida total.
Eis que, de repente, meu mergulho nada altruísta foi substituído por um inesperado momento de orgasmo espiritual: o fantástico mundo do surreal abriu as portas pra eu entrar.
ORGASMO ESPIRITUAL COM REFLEXOS CONCRETOS, MUITO CONCRETOS, NO CORPO FÍSICO. NO MEU CORPO.
TIVE SÉRIOS E PRAZEROSOS TREMELIQUES.
Tava feito lagartixa, dormindo e acordada ao mesmo tempo... Até que ouvi passos. Tentei abrir os olhos e não consegui. Alguém veio do meu lado e tirou um isqueiro da minha mão que eu não sabia se tava realmente ali. Era um sonho absolutamente real. Senti o tocar de uma mão na minha mão. E esse gesto do além me excitou profundamente. A partir daí, foi uma enxurrada de sensações que eu não sei como exprimir, não aprendi como nomear aquilo, talvez porque tenham sido imagens fora do corpo físico. Algo de um mundo misterioso. Era uma cegueira dos olhos, afinal eles estavam fechados, e uma abertura da mente e do corpo. Não era uma cegueira negra, a dos cegos ditos normais, nem alva, a dos cegos do Saramago. Era uma cegueira colorida. Colorida e viva até demais, um filme do Almodóvar.
Vi o grisalhão gostoso que entrega cigarros na calada da noite plantado no meio da sala, ofuscado pela luz estourada vinda do teto. Ele me agarrou e me deu um beijo. Tentei abrir os olhos e não consegui. Tinha total consciência que tava deitada no sofá, mas sentia e via o meu corpo aos agarros com ele no carpete. Meus lábios ardiam e comecei a soltar faísca. Minhas pernas tremiam e eu queria sexo mais do que nunca! De repente, um empurrão!
Tchuffff! Um furacão me carregou de volta pro meu corpo no sofá. Tentei abrir os olhos e não consegui. Só senti alguém tirando minha roupa e roçando em mim. Beijava minha nuca... beijava minha boca...roçava a barba nas minhas costas...algo entrou em mim! Ui! Comecei a sentir um prazer insuportável, o além tava fazendo sexo deliciosamente comigo! Uma onda de prazer me percorreu. Tentei abrir os olhos e não consegui! Mas eu vi! Eu vi de olhos fechados: era o grisalhão me fodendo, e ele me penetrava profundamente na posição que eu mais gosto, deitada de costas. Fazíamos movimentos circulares, de vai e vém, rebolávamos e mexíamos o corpo... Minha sensibilidade perdeu o rumo, minha excitação foi às alturas e quando não agüentava mais um tremor invadiu meu corpo,gemi alto e delirei!
Literalmente urrei de prazer.
Tentei abrir os olhos e consegui.
Ninguém em casa. Tava de roupa. Na minha calça, pentelhos grisalhos...
No som, antes desligado, cantava o Chico “o que não tem decência nem nunca terá, o que não faz sentido...”

Eu me distraio.


E me distraio muito.