sexta-feira, 7 de agosto de 2009

BURACO ENTRE AS PERNAS


...até Jung se assustaria com tanta sincronicidade...

HELA passou a tarde fazendo um gato de papel marché. O gato nasceu com corpanzil de tigre e cílios de leoa. Foi só o bichano ficar de pé que o interfone tocou: era Josi, o porteiro que mamulengava , avisando que deixaram uma VHS lá embaixo. Nenhuma informação a mais; nem do Josi nem na fita. Play no vídeo cabeçote sujo imediatamente:
ALFREDO (!!!!???)
Não era possível!
Meu falecido e desconhecido avô. Cuspindo um baita não-dito. QUE DEU UM SUSTO. Que não vai passar.
UM BURACO ENTRE AS PERNAS.


Chuviscos de super 8 na tela: senhor Alfredo pra frente e pra trás na cadeira de balanço enquanto fuma o seu cigarrinho de palha ao som de grilos e corujas e zumbidos sob uma noite estrelada.
Com todos os suspiros e inflexões devidas, vovô expurgou sua existência tal qual um Marlon Brando da vida.
- Faz muito tempo que vivo sozinho. Tenho tara por espaços vazios. Chega uma hora que você aprende a freqüentar você mesmo, sabe?
Baforada de fumaça.
Essa história de mudar é balela... Desde o berçário Alfredo (eu) é igual a Alfredo (Eu). Só que hoje esse Alfredo sabe como é ser Alfredo. (tosse seca) Ora, tem 76 anos que piso na Terra e percebo um sobe e desce danado da mesma carapuça. E essa carapuça que aqui fala (com ímpeto)se resume a busca incessante por uma descendente fêmea;(resignado) tudo o que eu não pude ser por mera desvontade da natureza.
Apaga o cigarro com o pé, a meia branca do chinelo de dedo cada vez mais pra cinza. Vovô encara forte a lente.
Nasci mulher num corpo de homem. Por mais amor que eu faça de costas, jamais vou poder olhar fundo e de frente nos olhos dos meus amantes... (indignando-se) Como eu enlouqueceria os homens pelo simples fato de ter um buraco no meio das pernas! Uma rachadura que seria aprimorada por aulas diárias de pompoarismo,,, ah, eu dominaria como ninguém a arte de sugar, expelir, chupitar e estrangular. (é quando ele trinca com desejo a dentadura).
Sempre pensei que parte da minha biografia - escrita errada e por linhas tortas - seria esfumaçada se eu originasse algo feminino. Decerto uma filha minha criaria algum acaso mais forte no meio de tanta falta de sentido.
Olha as estrelas e solta um sorriso de ternura sacana.A primeira mulher que se dispôs a trepar comigo, mesmo sabendo da minha ojeriza , foi Bete. Bete era meu amor de infância. Eu tinha 24 anos e conhecia Bete desde os sete. Ela era boa demais, só vinha na hora que eu queria. Sempre.
Nunca foi inconveniente, nunca. Um ser humano hors concours em senso do ridículo. Lembro que a gente escutava Pink Floyd e brincava com as Barbies ou os pôneis, nunca os dois juntos, engraçado... Ela era uma devassa. No fundo eu tinha desejo de ser ela - coisa ainda não amadurecida na cabeça de um moleque que, faltava pouco, iria descobrir sua homossexualidade.
No dia marcado pro ato, escolhido a dedo no período fértil, me esperou com a boca semi- aberta e os olhos de gavião. Suas axilas tinham odor de capim cidreira. Fiquei tempos só olhando e não vendo... Tava embalado pelas lembranças de infância, quando eu ainda acertava a gude no buraco. Se macho fosse, seria mole nós rebolarmos juntos os círculos da cintura e da vida, tocando nas agruras do passado remexido no futuro que tá presente...
Foi PÁ-PUM. Tanto a rapidez do ato quanto a velocidade da má notícia:
Sim, ela engravidara.
Mas de um macho.
Ao todo vieram mais três. Apesar de homens, nasceram fêmeas feito eu.
Foi tanto desgosto junto que, certa vez, tentei me matar. Mas o não pagamento da conta de gás brecou meus planos... Acordei no mesmo chão de cozinha velha e encardida.
Nenhum dos meus filhos esconde a afeminação; são coisas que vão desde a disposição linear das garrafas de Perrier na geladeira até a coleção de DVDs da Whitney Houston. Agora vejo que a teoria da evolução é minha Bíblia e Darwin é Deus.
E dizer que estraguei anos de minha vida, que eu quis morrer, que tive meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu gênero! Uma mulher que nunca nasceu...
É da minha natureza gerar bichos amorfos.
FADE OUT

Hela chorou e soluçou ao ponto de se engasgar. Olhou o bichano de papel marché e desmilinguiu de vez. Era uma sina dessa gente produzir seres desencaixados.
De supetão dormiu.
E, sem perceber, sua água derreteu o estranho gato recém-nascido.

Um comentário:

  1. Eu gostaria muito que você voltasse a escrever aqui.
    Tão nua, tão fugaz e intensa...

    ResponderExcluir